Diarreia dos viajantes
Fernando SV Martins, Luciana GF Pedro & Terezinha Marta PP Castiñeiras
A diarreia é o principal problema de saúde durante viagens, afetando de 10 a 50% dos viajantes.
O termo diarreia dos viajantes define um grupo de doenças que é resultante da ingestão de água e alimentos contaminados por agentes infecciosos e que tem a diarreia como manifestação principal.
Em geral, a diarreia dos viajantes tem duração de dois a três dias, mas pode causar desconforto e impedir a realização de atividades importantes.
Pode ainda evoluir com complicações como a desidratação, o que é mais comum em crianças pequenas, idosos e portadores de doenças crônicas.
Transmissão
Os agentes infecciosos (bactérias, vírus, helmintos e protozoários) são a principal causa de diarreia e intoxicações alimentares em viajantes.
A maioria dos agentes infecciosos pode ser adquirida através de transmissão fecal-oral, resultante da contaminação da água e de alimentos por dejetos, direta ou indiretamente.
Nos alimentos, a contaminação pode ocorrer antes, durante ou após o preparo.
O armazenamento incorreto de alimentos ou insumos em temperaturas inadequadas (entre 5 e 60 °C) por um período longo de tempo (horas) facilita a multiplicação de agentes infecciosos.
INFECÇÃO ALIMENTAR
A diarreia dos viajantes, em geral, é uma infecção alimentar, ou seja, ocorre após a ingestão de água ou de alimentos contaminados por um agente infeccioso, que pode multiplicar-se no trato digestivo humano.
O agente infeccioso pode causar diarreia por ser invasivo (como a Salmonella spp.) ou, não sendo invasivo (como a Escherichia coli produtora de toxinas), por ser capaz de produzir enterotoxinas, após multiplicar-se no interior do organismo humano.
As intoxicações alimentares resultam da ingestão de toxinas que causam vômitos (principalmente) e diarreia e que são produzidas antes da ingestão dos alimentos (toxinas pré-formadas) por agentes infeccioso (como o Staphylococcus aureus).
As intoxicações alimentares são eventos frequentes também em países desenvolvidos e por terem mecanismos de transmissão e medidas de proteção semelhantes, são relacionadas à diarreia dos viajantes.
A frequência de cada agente infeccioso como causa de diarreia dos viajantes e de intoxicações alimentares pode variar de acordo com países e regiões visitadas.
BACTÉRIAS: PRINCIPAIS CAUSAS
As bactérias são a principal causa de diarreia dos viajantes e, dependendo do local de destino, a Escherichia coli enterotoxigênica (ETEC – produtora de toxinas) pode ser responsável por 25-50% dos casos, seguida em frequência por espécies de Shigella, Salmonella e Campylobacter.
Os vírus (adenovírus, astrovírus, rotavírus e calicivírus) podem ser causa importante diarreia em pessoas que viajam e surtos em navios causados por Norovírus (um dos calicivírus) são relativamente comuns.
Os parasitas intestinais (Giardia lamblia, Entamoeba histolytica, Cryptosporidium parvum e Cyclospora cayetanensis) geralmente são os responsáveis pelas diarreias mais prolongadas, algumas vezes com duração superior a 14 dias.
INTOXICAÇÕES
As principais causas de intoxicações alimentares são as enterotoxinas produzidas pelo Staphylococcus aureus (toxina emética – causadora de enjoo e vômitos) e Bacillus cereus (toxina emética e toxina diarreica), bactérias que podem contaminar os alimentos antes, durante ou depois da preparação.
A influência do consumo de bebidas alcoólica, do stress e da mudança na dieta como causa de diarreia ainda não está claramente definida. Provavelmente esses fatores são responsáveis por uma parcela dos casos leves que evoluem sem febre ou comprometimento significativo da saúde.
RISCOS
O risco da diarreia dos viajantes e de intoxicações alimentares existe em qualquer país do mundo e é consideravelmente maior durante o verão.
A diarreia dos viajantes acomete cerca de 10% (países
desenvolvidos) a 50% (países em desenvolvimento) das pessoas que viajam.
Ainda que, geralmente, seja de curta duração (dois a três dias), pode levar à total incapacidade de realizar atividades programadas. Considerando a frequência da doença, a interrupção das atividades, em determinadas circunstâncias, pode causar enormes transtornos e, adicionalmente, ter impacto financeiro significativo.
Para pessoas que viajam por motivo de trabalho, militares em missões e atletas em competição, a incapacidade de realizar adequadamente atividades programadas pode resultar em prejuízos significativos e potencialmente irreparáveis.
Os hábitos alimentares do viajante, da população local e a estação do ano (ex.: verão) são fatores de risco importantes.
O consumo de alimentos preparados por vendedores ambulantes ou de alimentos crus (como frutos do mar) constituem fatores de risco elevado.
A alimentação compartilhada, feita com outras pessoas em um mesmo recipiente, ou a ingestão de alimentos com o auxílio das mãos, comum em muitos países, aumenta o risco de aquisição de agentes infecciosos.
O desenvolvimento das manifestações depende de fatores como a quantidade de micro-organismos ingeridos (inóluco), a virulência dos agentes infeciosos e os mecanismos individuais de defesa.
Para algumas bactérias, como a Escherichia coli enterotoxigênica, é necessária a ingestão de um grande número de micro-organismos – cerca de 106 micro-organismos para provocar diarreia, o que ocorre com maior facilidade em regiões com infraestrutura de saneamento básico precária.
Para outras bactérias, como a Shigella, um pequeno inóculo (menos de 200 micro-organismos) é capaz de desencadear diarreia, o que pode resultar em aumento da incidência de contaminação dos alimentos e da água através de manipulação inadequada ou por insetos (moscas, baratas), mesmo em locais com saneamento básico adequado.
IMUNIDADE
As pessoas com comprometimento dos mecanismos de defesa, como ocorre nos extremos de idade (crianças e idosos), quando existe diminuição da acidez gástrica, nos gastrectomizados, nas doenças crônicas intestinais e nas imunodeficiências, têm um risco maior de desenvolver diarreia dos viajantes.
Os viajantes que são portadores de insuficiência renal crônica, insuficiência cardíaca congestiva, diabetes insulinodependente, ou de doenças inflamatórias intestinais são particularmente susceptíveis à variação da quantidade de água e sais minerais no organismo, e estão sob risco de descompensar a doença de base em razão da diarreia.
Em viajantes, a diarreia pode ser uma consequência de doenças infecciosas mais graves e potencialmente fatais, como as formas graves de cólera (que deve ser sempre investigada quando a diarreia é profusa), a febre tifóide e a malária (ambas cursam com febre).
MEDIDAS DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL
O risco de diarreia dos viajantes e de intoxicações alimentares pode ser significativamente reduzido por meio da adoção sistemática de medidas de proteção contra doenças transmitidas por água e alimentos.
A seleção de alimentos seguros e o consumo de água tratada são essenciais, ainda que não sejam tarefas simples por envolverem mudanças individuais de percepção de riscos, atitudes e hábitos.
Em geral, a aparência, o cheiro e o sabor dos alimentos não ficam alterados pela contaminação com os agentes infecciosos. Para reduzir os riscos, o viajante deve alimentar-se em locais que tenham condições higiênicas adequadas e observar cuidados adicionais na seleção de alimentos.
MAIOR RISCO
Os alimentos de maior risco são aqueles mal cozidos ou crus, como as saladas, os frutos do mar, os preparados com ovos (como maionese, molhos, sobremesas tipo mousse), leite e derivados não pasteurizados (queijos, iogurtes, cremes), sucos, sorvetes e bebidas (batidas, caipirinhas) que contenham água não tratada ou gelo.
O consumo de alimentos expostos (como em buffets) à temperatura ambiente por períodos prolongados (horas) implica em risco elevado de adoecimento.
Em razão disto, deve ser preferido o consumo de alimentos bem cozidos ou fervidos, preparados na hora do consumo e servidos ainda quentes (“saindo fumaça”). No entanto, não devem ser consumidos alguns alimentos que são “preparados na hora” (como hambúrgueres e sanduíches) quando não houver segurança de que os produtos necessários foram armazenados em locais e temperaturas adequadas.
TOXINAS
Neste sentido, deve ser considerado que o aquecimento dos alimentos posterior à preparação pode inativar a toxina diarreica, porém não destrói as toxinas eméticas que causam as intoxicações alimentares.
Em qualquer país do mundo, a alimentação com vendedores ambulantes deve ser evitada, por constituir um risco elevado para a aquisição de doenças.
Em áreas que não possuem infraestrutura de saneamento básico adequada, a água para consumo deve ser tratada pelo próprio viajante.
O tratamento químico da água a ser utilizada como bebida ou no preparo de alimentos pode ser feito com compostos halogenados (cloro ou iodo). O cloro e o iodo são capazes de eliminar a maioria dos agentes infecciosos e têm eficácia semelhante, quando utilizados nas concentrações e por períodos de tempo adequados.
CUIDADOS COM O IODO
No entanto, os oocistos do Cryptosporidium parvum (que pode causar diarreia em imunodeficientes) são resistentes a ambos. Além disto, deve ser considerado que o iodo ingerido com a água pode “interferir no funcionamento da tireoide”, quando utilizado por longo período ou em indivíduos predispostos.
Os compostos iodados estão absolutamente contraindicados em gestantes e em pessoas portadoras de doenças tireoidianas.
FILTROS PORTÁTEIS
Os filtros portáteis podem ser úteis no tratamento da água para consumo e quando têm diâmetro dos poros entre 0,1 a 1 µm, removem a maioria de bactérias, helmintos e protozoários, mas não eliminam os vírus de forma efetiva.
Em razão disso, o viajante deve utilizar filtros impregnados previamente com compostos halogenados ou, alternativamente, utilizar cloro (ou iodo) após a filtração.
É importante verificar as instruções do fabricante quanto ao número de vezes em que é possível a utilização segura do filtro.
PREVENIR COM ANTIBIÓTICOS?
Não se recomenda a utilização sistemática de antibióticos profiláticos (preventivos) para a diarreia dos viajantes. Além do alto custo, os antibióticos podem causar efeitos adversos importantes, como fotosensibilidade (aumento da sensibilidade da pele ao sol), reações alérgicas, alteração da microbiota intestinal (colonização por bactérias resistentes, aumento do risco de febre tifóide), desenvolvimento de infecções fúngicas como candidose vaginal e risco de colite (inflamação do intestino) causada por Clostridium difficile.
Também não se recomenda o uso, como rotina, do subsalicilato de bismuto, uma vez que a posologia (quatro doses por dia) é pouco conveniente e existe o risco de toxicidade associada ao salicilato.
A utilidade do uso de probióticos (como o Lactobacillus) para a evitar a diarreia dos viajantes não está claramente definida.
Não existem vacinas disponíveis contra todos os agentes infecciosos que causam a diarreia dos viajantes.
A E. coli enterotoxigênica (ETEC) pode produzir dois tipos de toxinas, isoladamente ou em associação. Uma das toxinas é sensível ao calor (toxina termolábil) e a outra é resistente (toxina termoestável).
A vacina oral contra a cólera, que contém a subunidade B da toxina colérica recombinante, pode ter algum efeito protetor cruzado contra a diarreia dos viajantes, exclusivamente quando esta é causada pela Escherichia coli produtora da toxina sensível ao calor, uma vez que a subunidade B e a toxina termolábil são semelhantes.
O efeito protetor cruzado pode variar de lugar para lugar, de acordo com a freqüência da E. coli produdora de toxina termolábil como causa da diarreia dos viajantes.
Nestas circunstâncias, a eficácia da vacina oral contra a cólera, quando se considera todas as causas de diarreia dos viajantes, é limitada.
Em razão disto, não se recomenda a utilização desta vacina quando risco a ser considerado é exclusivamente a diarreia dos viajantes, exceto em situações de risco individual elevado de aquisição da doença (como diminuição da acidez gástrica) ou em pessoas nas quais as consequências podem ser muito graves, tais como: insuficiência renal crônica, insuficiência cardíaca congestiva, diabetes insulinodependente, doenças inflamatórias intestinais etc
MANIFESTAÇÕES
A diarreia do viajante se manifesta com aumento do número de evacuações (três ou mais episódios em 24 horas) associado ao amolecimento das fezes (líquidas ou pastosas).
Em mais de 90% dos casos é de curta duração (dois a três dias) e, geralmente, é causada por bactérias.
A diarreia pode estar acompanhada de dor abdominal tipo cólica, naúseas, vômitos e, em alguns casos, de febre.
A ocorrência de vômitos pode levar ao aumento da perda de líquidos e diminuir a capacidade do indivíduo de ingerir soluções orais para reidratação, contribuindo consideravelmente para a desidratação.
A presença de febre, de sangue ou pus nas fezes pode ser indício de diarreia invasiva e indica que o viajante deve ser avaliado por um médico o mais rápido possível.
Em 5 a 10% dos casos, a diarreia do viajante pode persistir por mais de 14 dias e, em 1 a 3% por mais de quatro semanas.
Além disto, em 4 a 10% da pessoas, a diarreia dos viajantes pode desencadear a síndrome do cólon irritável, especialmente quando causada por bactérias invasivas que provocam colite inflamatória, como Campylobacter, Salmonella, Shigella e Escherichia coli O157.
A síndrome do cólon irritável pós-infecciosa é caracterizada pela persistência, intermitente ou contínua, de alterações intestinais (diarreia ou, menos frequentemente, constipação e cólica abdominal) após um episódio de diarreia infecciosa.
As intoxicações alimentares causadas por toxinas pré-formadas têm um período de incubação muito curto, que pode variar de trinta minutos a até oito horas.
As manifestações clínicas predominantes são os vômitos. Mas algumas pessoas podem evoluir com diarreia e, mais raramente, com febre.
A aquisição da doença resulta do consumo de alimentos que antes, durante ou depois de preparados foram contaminados com bactérias (Staphylococcus aureus, Bacillus cereus) que podem se multiplicar e produzir enterotoxinas que causam vômitos e diarreia.
A maioria dos casos de cólera apresenta-se como uma diarreia leve ou moderada, que é indistinguível clinicamente e tem o mesmo tratamento básico (hidratação oral) dos casos comuns de diarreia do viajante.
No entanto, em todos os casos que evoluem com diarreia profusa, a possibilidade de cólera deve ser excluída, uma vez que em algumas pessoas (menos de 10%), a doença pode evoluir de forma mais grave, com início súbito de uma diarreia aquosa profusa, geralmente sem muco, pus ou sangue e, com frequência, acompanhada de vômitos, que rapidamente leva à desidratação e pode ser fatal.
A febre tifóide é uma doença de evolução relativamente lenta. A febre, que inicialmente é baixa, torna-se progressivamente mais alta e ocorre alteração do trânsito intestinal, manifestada por diarreia ou constipação intestinal (“prisão de ventre”).
A hipótese de malária deve ser sempre investigada todas as pessoas que tenham sido expostas ao risco de infecção – comumente viagem a uma área de transmissão – e apresente qualquer tipo de febre, associada ou não à diarreia.
TRATAMENTO
O tratamento básico da diarreia do viajante e das intoxicações alimentares consiste em reidratação, que deve ser iniciada o mais precocemente possível.
Em casos leves, a reidratação pode ser feita por via oral, preferentemente com uma solução reidratante contendo eletrólitos (sais) e glicose, em concentrações adequadas (sais de reidratação oral).
A solução de reidratação oral deve ser preparada imediatamente antes do consumo e o conteúdo de um envelope deve ser dissolvido em um litro de água fervida, após o resfriamento.
A solução não pode ser fervida depois de preparada, mas pode ser conservada em geladeira por até 24 horas. Pode ser ingerida de acordo com a aceitação, com frequência e volume proporcionais à intensidade da diarreia.
Deve ser alternada com outros líquidos (água, chá, sopa). A alimentação deve ser reiniciada após três a quatro horas de aceitação adequada da reidratação oral e, nos lactentes, o aleitamento materno deve ser mantido desde o início.
CRIANÇAS
Em crianças, deve se iniciar a hidratação imediatamente e evitar alguns medicamentos contra vômitos, uma vez que podem ocasionar intoxicação, com diminuição do nível de consciência e movimentos involuntários, dificultando a ingestão da solução oral de reidratação.
Além disso, a medicação é geralmente desnecessária, uma vez que os vômitos tendem a cessar com o início da reidratação.
A utilização de qualquer medicamento deve ser feita exclusivamente com orientação médica.
O uso de medicamentos como antibióticos ou antiparasitários, após avaliação médica, pode estar indicado (ou não) em casos de diarreia que evoluem com febre, presença de sangue ou pus e nas que se manifestam por um período de tempo prolongado.
Os antibióticos não estão indicados nos casos de intoxicações alimentares, uma vez que não atuam contra as toxinas pré-formadas.
A utilização de agentes que reduzem a motilidade intestinal (difenoxilato, loperamida) para tratamento sintomático da diarreia do viajante não é recomendada e está associada à possibilidade do desenvolvimento de megacolon tóxico (dilatação aguda, total ou parcial do intestino grosso, potencialmente fatal).
Medicamentos que atuam reduzindo a secreção de líquido da mucosa intestinal (como o subsalicilato de bismuto) têm início de ação lento, posologia pouco conveniente (quatro doses por dia), risco de toxicidade associada ao salicilato e, adicionalmente, podem interferir na absorção de antibióticos (como a doxiciclina).
Os casos mais graves devem ser hospitalizados para hidratação venosa até a melhora das condições clínicas da pessoa e, tão logo quanto possível, a reidratação oral deve ser feita simultaneamente.
Nas diarreias mais acentuadas (nas quais a cólera deve ser excluída) ou mais prolongadas (duração maior que três dias), nas que evoluem com presença de sangue ou pus ou com febre (quando deve ser feito o diagnóstico diferencial com febre tifóide e malária) um Serviço de Saúde deve ser procurado o mais rápido possível.
Autores
Fernando SV Martins, Luciana GF Pedro & Terezinha Marta PP Castiñeiras
Centro de Informação em Saúde para Viajantes da UFRJ |
http://www.cives.ufrj.br/informacao/dv/dv-iv.html