A Giardia intestinalis (Giardia duodenalis, Giardia lamblia) é um protozoário da porção superior do intestino delgado.
Negligenciada, segundo a OMS
Constitui causa muito frequente de doença diarreica em grande variedade de espécies animais, incluindo o homem (1, 2). Por ser um parasita frequente em grande parte do planeta, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu a giardíase no grupo de doenças negligenciadas (1).
Transmissão
A transmissão da G. intestinalis pode ocorrer após ingestão de cistos infectantes através da água ou de alimentos contaminados, ou por via fecal-oral direta (3).
Sinais clínicos
Os principais sinais clínicos incluem náusea, perda de peso, edema, dor abdominal e diarreia. A infecção por G. intestinalis é multifatorial, envolvendo fatores do parasito e do hospedeiro. Evidências recentes sugerem que a gravidade do quadro clínico difere entre regiões em desenvolvimento e países industrializados (4-7).
Estudos sugerem o envolvimento do parasita em doenças intestinais crônicas, como síndrome do cólon irritável, e em doenças extraintestinais, embora o agente permaneça restrito ao trato intestinal, e há evidências de seu envolvimento no atraso do crescimento em crianças (8, 9).
Epidemiologia
A giardíase está distribuída por todo o planeta, sobretudo em regiões tropicais e subtropicais. No Brasil sua prevalência varia de 12,4% a 50%, dependendo do estudo, da região e da faixa etária pesquisada, predominando nas crianças entre zero e seis anos.
Estudo feito em Botucatu, SP, revelou acometimento de crianças em faixa etária predominante de um a quatro anos (10).
Pode ser transmitida por ingestão de cistos que contaminam a água e alimentos (via mais frequente), por contato interpessoal (em enfermos institucionalizados — p. ex., creches e hospitais psiquiátricos) e via sexual (sexo anal/ oral), a qual é teoricamente possível, mas não plenamente aceita por todos os autores.
Creches, escolas e aglomerados
Aglomerados populacionais com precárias condições sanitárias e o convívio em creches aumentam a disseminação desse enteropatógeno. Em muitas regiões há um pico sazonal simultâneo no verão, relacionado à maior frequência a piscinas comunitárias por crianças de pouca idade, à eliminação de cistos prolongados e à pouca quantidade infectante (11).
As parasitoses intestinais apresentam alta incidência em creches, sendo um fator de risco de infestação de enteropatógenos entre as crianças que as frequentam (12).
Estudo realizado em praças públicas detectou esse parasito em fezes de cães, demonstrando o risco de contaminação humana, sobretudo de crianças que têm o hábito de brincar no solo e apresentam distúrbios de perversão do apetite, como a geofagia (hábito de ingerir terra).
Normalmente os cães infectados não manifestam a doença. No entanto, o parasito é comum em cães e também em gatos com sintomas gastrointestinais, como vômito e/ou diarreia (14). O hábito de defecar em lugares impróprios e com saneamento precário também foi associado à perpetuação do ciclo do agente (15).
Cisto pode durar até 2 meses
Nestes termos, é também importante a atuação de vetores mecânicos, já que o cisto permanece viável no meio ambiente por até 60 dias, sendo destruído em temperaturas superiores a 64°C. Porém sobrevive até 24 horas no trato digestivo de moscas e por vá- rios dias no de baratas.
Atenção especial nos casos de imunodeficiência humana
A presença de imunodeficiências humorais — como hipogamaglobulinemia comum variável e gamaglobulinemia ligada ao X — é ator predisponente de infecção sintomática crônica por G. intestinalis, corroborando a importância da imunidade humoral contra o agente (11).
Fibrose cística e giardíase
Os pacientes com fibrose cística apresentam elevada incidência de giardíase, devido à maior quantidade de muco no duodeno, o qual protege o parasito das defesas do hospedeiro.
Os bebês alimentados ao seio podem obter proteção através de glicoconjugados e anticorpos de IgA secretória, presentes no leite materno (11).
O agente e seu ciclo biológico
A Giardia intestinalis é um protozoário flagelado, em forma de pera.
O trofozoíto mede 20 por 10μm, existindo de cada lado um disco em forma de ventosa, por meio do qual se fixa à superfície das células da mucosa intestinal, sendo encontrado em toda a extensão do duodeno. Possui ciclo biológico monoxênico (apenas um hospedeiro definitivo).
Após a ingestão, os cistos se rompem no duodeno, formando trofozoítos, os quais se multiplicam intensamente.
14 bilhões de cistos eliminados por dia
Os cistos são eliminados pelas fezes em grande quantidade (300 milhões a 14 bilhões por dia), ocorrendo períodos de interrupção de eliminação de sete a 10 dias.
Os trofozoítos também podem estar presentes nas fezes, mas são os cistos os responsáveis pela transmissão. Os cistos resistem fora do hospedeiro, sobrevivendo em água doce e fria. Entretanto, toleram o aquecimento, a desidratação e a exposição prolongada às fezes (16, 17).
Patogênese
O processo patológico depende do número de parasitos que colonizam o intestino delgado, da cepa do protozoário e do sinergismo entre bactérias e fungos, além de fatores inerentes ao hospedeiro, como hipocloridria e deficiência de IgA e IgE na mucosa digestiva.
Uma alta carga parasitária pode provocar ação irritativa sobre a mucosa intestinal, levando à produção excessiva de muco e a alterações da produção de enzimas digestivas — principalmente dissacaridases —, ocasionando intolerância ao leite e derivados, além da formação de barreira mecânica. Todos dificultam a absorção (vitaminas lipossolúveis, ácidos graxos, vitamina B12, ácido fólico e ferro).
Lesões nas microvilosidades intestinais
Ocorrem também lesões produzidas pelos trofozoítos fortemente aderidos ao epitélio intestinal ao nível das microvilosidades intestinais, e até invasão da lâmina própria (18). Geralmente não são observadas alterações macroscópicas no intestino, mas em alguns casos crônicos pode-se evidenciar achatamento das microvilosidades ao estudo histopatológico (16).
Aspectos clínicos
A maioria dos casos é assintomática ou oligossintomática, sobretudo em pacientes adultos. Contudo, a doença pode apresentar amplo espectro clínico em crianças ou adultos jovens; as crianças pequenas podem, em raros casos, evoluir com hemorragia retal e fenômenos alérgicos. As manifestações podem surgir de forma súbita ou gradual.
Quadro agudo
Na giardíase aguda os sintomas surgem após um período de incubação, geralmente de uma a três semanas (16).
Quadro crônico
Na giardíase crônica os sintomas podem ser contínuos ou episódicos, persistindo por anos, e o paciente não necessariamente desenvolve manifestações agudas (16). Menos frequentemente pode ocorrer disseminação extraintestinal, na qual os trofozoítos migram para os dutos biliares e pancreáticos (11).
Diarreia = mais comum
A manifestação clínica mais frequente é a síndrome diarreica, caracterizada por diarreia de evolução crônica, contínua ou com surtos de duração variável, acompanhada por cólicas abdominais, com alternância de exonerações normais e constipação intestinal.
As evacuações em geral ocorrem duas a quatro vezes ao dia. As fezes são pastosas, abundantes, fétidas e com predomínio de muco.
Outras manifestações importantes
Outras apresentações clínicas menos comuns são: síndrome de má absorção, que causa emagrecimento, anorexia, distensão abdominal, flatulência, desnutrição, raquitismo e esteatorreia, além de anemia; síndrome dispéptica, com sensação de desconforto epigástrico, plenitude gástrica pós-prandial, eructações, pirose e náuseas, além de vômitos; e síndrome pseudoulcerosa, constituída por dor epigástrica ou pirose, que melhora com a ingestão de alimentos e retorna com o jejum.
Diagnóstico
A clínica é inespecífica (19). O diagnóstico definitivo é realizado a partir do encontro dos trofozoítos, cistos ou antígenos de G. intestinalis em qualquer amostra de fezes ou fluido duodenal (11).
No entanto, deve-se ficar atento, pois o diagnóstico de giardíase através da pesquisa de trofozoítos ou cistos apresenta elevada percentagem de resultados falso-negativos (20). Em relação ao laboratório, é importante ressaltar:
— Pesquisa de cistos (em fezes formadas): exame direto (a fresco) ou corado pelo lugol; podem ser também utilizados o método de Faust e colaboradores (método de escolha) ou o de Hoffman, Pons e Janer.
— Pesquisa de trofozoítos (em fezes líquidas): direto a fresco, ou corado pelo lugol, hematoxilina férrica ou mertiolate- -iodo-formol (MIF) (é a rotina, e tem menor custo). Como os trofozoítos são destruídos no meio externo em 15 minutos, é conveniente conservar as fezes com o conservante de Schaudinn ou MIF.
Recomenda-se a aspiração ou a biopsia do duodeno e do jejuno em pacientes que apresentam manifestações clínicas e exames de fezes para G. intestinalis negativos, como também amostra de fluido duodenal, e se encaixam em um dos seguintes critérios: achados radiológicos (edema, segmentação do intestino delgado), resultado anormal no teste de tolerância à lactose, nível ausente de IgA secretória, hipogamaglobulinemia ou acloridria (11).
Para o procedimento utiliza-se uma amostra fresca, na qual os trofozoítos geralmente são visualizados por exame direto em lâmina, ou através de um método alternativo disponível comercialmente, denominado Entero-Test (11).
Imunosseparação magnética
Hoje também se encontra disponível a técnica de imunosseparação magnética, acoplada à imunofluorescência (IMS-IFA), para detecção de cistos de Giardia lamblia em fezes humanas.
Acredita-se que a eficácia desta técnica seja maior, comparada com a das técnicas parasitológicas de Faust et al. e de Lutz. Além disso, esta metodologia como procedimento de rotina proporciona o processamento de várias amostras simultaneamente, além de aumentar a recuperação de cistos de G. lamblia e reduzir o tempo de estocagem das amostras (21).
ELISA
O teste de ELISA (enzyme-linked immunosorbent assay) também se mostrou útil devido a sua alta sensibilidade, que varia de 85% a 100%. Além disso, esse método pode ajudar no diagnóstico eliminando os resultados falso-negativos que ocorrem nos exames microscópicos (22, 23).
Medicamentos podem alterar a forma
Alguns medicamentos, como antimicrobianos, antiácidos, antidiarreicos, enemas e preparações laxativas, podem alterar as características morfológicas do microrganismo, resultando em desaparecimento temporário do protozoário nas amostras de fezes (11, 24).
Tratamento
O Ministério da Saúde propõe os seguintes tratamentos para a giardíase:
— Secnidazol 2g VO em dose única para adultos, e 30mg/kg ou 1ml/kg para crianças, em dose única, após refeição.
— Tinidazol 2g VO, em dose única.
— Metronidazol 250mg duas vezes ao dia, por cinco dias, para adultos; em crianças, 15mg/kg/dia, VO, divididos em duas tomadas, por cinco dias, não ultrapassando 250mg.
Ensaios clínicos mais recentes
Em revisão recente da literatura, Granados et al. (2012) utilizaram dados de estudos obtidos a partir das fontes the Cochrane Infectious Disease Group Specialized Register, the Cochrane Central Register of Controlled Trials (CENTRAL), MEDLINE, EMBASE, LILACS e the International Clinical Trials Registry Platform Search Portal. Estes autores revisaram 19 ensaios clínicos considerando albendazol, metronidazol, tinidazol e nitazoxanida, envolvendo 1.817 participantes (1.441 crianças).
Relataram que a maioria desses estudos apresentava problemas de número amostral ou outros problemas metodológicos, inclusive com a confirmação etiológica do parasito. Dez estudos, provenientes da Índia, México, Peru, Irã, Cuba e Turquia, compararam o albendazol e o metronidazol; cinco estudos, oriundos da Espanha, Reino Unido e Turquia, compararam o mebendazol e o metronidazol. Outros cinco estudos compararam o tinidazol, o metronidazol e a nitazoxanida.
Albendazol
Os autores concluíram, nessa revisão, que o albendazol apresenta efetividade similar à do metronidazol e menos efeitos colaterais, com a vantagem de ser administrado em regimes posológicos mais simplificados, e que são necessários mais estudos, com menos problemas metodológicos, para avalia ção de novas alternativas de tratamento.
Profilaxia e controle
As medidas mais importantes para a prevenção da giardíase são o acesso a adequadas condições de saneamento, ingestão de água tratada ou fervida, cuidados com a higiene pessoal e adequada preparação e conservação dos alimentos.
Além disso, são importantes o controle de insetos e o adequado diagnóstico e tratamento dos doentes, visando interromper a cadeia de transmissão.
Considerações finais
A giardíase é uma parasitose com raras complicações. No entanto, a julgar pela alta prevalência e impacto em saúde pública, torna-se importante a disseminação dos aspectos atinentes ao diagnóstico, tratamento e, sobretudo, à profilaxia.
Saiba mais (fonte: Ministério da Saúde)
ASPECTOS CLÍNICOS E EPIDEMIOLÓGICOS
Descrição – Infecção por protozoários que atinge, principalmente, a porção superior do intestino delgado. A maioria das infecções são assintomáticas e ocorrem tanto em adultos quanto em crianças. A infecção sintomática pode apresentar diarreia, acompanhada de dor abdominal. Esse quadro pode ser de natureza crônica, caracterizado por fezes amolecidas, com aspecto gorduroso, acompanhadas de fadiga, anorexia, flatulência e distensão abdominal. Anorexia, associada com má absorção, pode ocasionar perda de peso e anemia. Não há invasão intestinal.
Sinonímia – Enterite por giárdia.
Agente etiológico – Giardia lamblia, protozoário flagelado que existe sob as formas de cisto e trofozoíto. O cisto é a forma infectante encontrada no ambiente.
Reservatório – O homem e alguns animais domésticos ou selvagens, como cães, gatos, castores.
Modo de transmissão – Fecal-oral. Direta, pela contaminação das mãos e consequente ingestão de cistos existentes em dejetos de pessoa infectada; ou indireta, através de ingestão de água ou alimento contaminado.
Período de incubação – De 1 a 4 semanas, com média de 7 a 10 dias.
Período de transmissibilidade – Enquanto persistir a infecção.
Complicações – Síndrome de má absorção.
Diagnóstico – Identificação de cistos ou trofozoítos no exame direto de fezes ou identificação de trofozoítos no fluido duodenal, obtido através aspiração.
A detecção de antígenos pode ser realizada através do ELISA, com confirmação diagnóstica. Em raras ocasiões, poderá ser realizada biópsia duodenal, com identificação de trofozoítos.
Diagnóstico diferencial – Enterites causadas por protozoários, bactérias ou outros agentes infecciosos.
Tratamento – Conforme indicado a seguir.
Medicamentos
Adulto – Secnidazol 2g, VO, dose única
Criança – 30mg/kg ou 1ml/kg, dose única tomada após uma refeição
Tinidazol 2g, VO, dose única (para adultos)
Metronidazol 250mg, VO, 2 vezes ao dia, por 5 dias
Crianças – 15mg/kg/dia (máximo de 250mg), VO, dividida em 2 tomadas, por 5 dias
Observação – Não usar bebidas alcoólicas durante ou até 4 dias após o tratamento (efeito antabuse). Contraindicados em gestantes.
Características epidemiológicas – É doença de distribuição mundial. Epidemias podem ocorrer, principalmente, em instituições fechadas que atendam crianças, sendo o grupo etário mais acometido entre oito meses e 10 a 12 anos.
A Giardia é reconhecida como um dos agentes etiológico da “diarreia dos viajantes” em zonas endêmicas. Os cistos podem resistir até dois meses no meio exterior e são resistentes ao processo de cloração da água.
A infecção pode ser adquirida pela ingestão de água proveniente da rede pública, com falhas no sistema de tratamento, ou águas superficiais não tratadas ou insuficientemente tratadas (só por cloração). Também é descrita a transmissão envolvendo atividades sexuais, resultante do contato oro-anal.
VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA
Objetivos – Diagnosticar e tratar os casos para impedir a transmissão direta ou indireta da infecção a outros indivíduos.
Notificação – Não é doença de notificação compulsória. Entretanto, os surtos devem ser notificados aos órgãos de saúde locais.
MEDIDAS DE CONTROLE
a) Específicas – Em creches ou orfanatos deverão ser construídas adequadas instalações sanitárias e enfatizada a necessidade de medidas de higiene pessoal.
Educação sanitária, em particular desenvolvimento de hábitos de higiene – lavar as mãos, após uso do banheiro;
b) Gerais – Filtração da água potável. Saneamento;
c) Isolamento – Pessoas com giardíase devem ser afastadas do cuidado de crianças. Com pacientes internados, devem ser adotadas precauções entéricas através de medidas de desinfecção concorrente para fezes e material contaminado e controle de cura, que é feito com o exame parasitológico de fezes, negativo no 7º, 14º e 21º dias após o término do tratamento.
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